quarta-feira, 30 de maio de 2018

O Brasil precisa de uma intervenção educacional

A história é implacável para explicar qualquer fenômeno contemporâneo. Tudo que acontece, já aconteceu. Os exemplos podem não ser exatos, mas são precisos. E quem não souber ler a história, para não repeti-la, será usado como massa de manobra por interesses obscurantistas – e oportunistas -, pedindo para que o cadafalso da forca se abra para cingir o próprio pescoço na corda.

A paralisação dos caminhoneiros – com um fedorento cheiro de locaute – é complexa e disforme, é uma classe inteira, entre autônomos e contratados de empresas, representados por mais de 20 entidades, nenhuma delas sindicais (que deveria mediar a negociação) e sem unanimidade entre os manifestantes. É uma classe que deveria estar organizada, mas está mais para um motim popular, desta vez beirando a inconsequência, como o povo às soltas nas ruas em 2013, pedindo cada um uma coisa.

Não é da manifestação que pretendo falar, mas ela é estopim para destrambelho mental de néscios. Com uma política liberal estúpida de precificação de combustíveis, uma política entreguista de venda de petróleo bruto e compra de refinados do exterior, estando a Petrobras operando abaixo da capacidade para servir ao interesses estrangeiros, mais a alta tributação no PIS/Cofins e uma crise de petróleo internacional, a situação se explica em causas e efeitos. E fica claro como se deve resolver o problema.

Mas neste ponto, na instabilidade, na beira do caos, o oportunismo toma vida e uma minoria desinstruída saiu do conforto de seus lares para pedir uma intervenção militar. Como disse, a história explica o hoje com o ontem. Em 1972, um locaute de caminhoneiros parou o Chile por 26 dias. O caos proposital levou ao golpe militar de Pinochet, culminando com o assassinato (considerado “suicídio” pelo regime) do presidente democraticamente eleito Salvador Allende.

A ditadura chilena durou 27 anos, com milhares mortos e torturados. Para sorte do Chile, eles têm museus do regime para nunca mais repeti-lo, assim como o Museu do Holocausto ou o Museu do Apartheid. Pinochet, tardiamente, foi preso. O Brasil não soube se curar da ferida ditatorial. Ainda temos ruas com nomes de tiranos, acobertamos, sem investigação, suas barbáries, dando números oficiais pífios ao regime, e anistiamos os criminosos de Estado, tratando-os como espectros a serem ignorados, que morreram velhos e em paz – como quase todo canalha, que é incapaz de sofrer até na morte.

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Um brasileiro que sai às ruas pedindo intervenção militar ou é alienado ou desonesto. Ou é uma pessoa que precisa estudar a história, que precisa compreender com clareza o mundo em que vive; ou, se estudou, compreende tudo isso e ainda quer a ruptura do Estado Democrático de Direito, essa pessoa tem um alto grau de desonestidade com o passado, com a sociedade e consigo mesmo. Eu prefiro apostar na falta de instrução: quem pede um Estado autoritário, não sabe o que está pedindo.

Por exemplo, nesta semana, um caminhoneiro à favor da intervenção militar reclamou da ação do exército contra os manifestantes: “É desnecessário porque não somos bandidos nem estamos fechando a via. Se a gente se recusar a sair o Exército vai fazer o quê? Bater na gente?”. Basicamente, é assim que funciona uma ditadura: repressão e proibição de manifestações. E olha que ainda vivemos na democracia. Uma democracia que permite alguns de se manifestarem pedindo o fim do direito de se manifestar. Paradoxal. Sintomático da incultura.

Democracia, diga-se, atropelada quando demandas dos caminhoneiros são atendidas e há a recusa pelo fim da mobilização. Quando alguém se senta pra negociar e aceita o interlocutor da negociação, não importando quem seja, mesmo se for o ultracorrupto Michel Temer, precisa cumprir sua parte quando receber o que pede. É assim que funciona. O que vem depois é outra coisa, obscura, vazia e pouco clara.

Em um protesto de 2015, um ônibus decorado pró-intervenção militar foi guinchado pela Polícia Militar, na Avenida Paulista. O veículo estava estacionado em local proibido e o dono estava indignado com a ação da PM. Ele recebeu sua intervenção militar e não percebeu. Seguiu culpando a democracia, dizendo em tom lamurioso e irônico “Essa é a nossa liberdade!”, tudo por não poder descumprir a lei. E esse é o grande problema de quem lambe as botas do autoritarismo: quer dividir a população entre “eles” contra “nós”. Sem saber ao certo quem são “eles” e “nós”. É praticamente um apelo à impunidade a si e uma punição exagerada aos outros.

Pra completar as sandices, nesta semana, um grupo pró-ditadura teve a capacidade de pedir intervenção militar ao som de “Pra não dizer que não falei das flores”, de Geraldo Vandré, um hino contra a ditadura, censurada pelo regime que entrava às portas do AI-5. É como clamar pelo fascismo cantando Bella Ciao, uma ignorância e uma falta de conhecimento básico de história.

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Outro argumento usado é que os militares tomariam o poder para reestabelecer a ordem e chamar novas eleições, apenas para eleger “honestos”. A história ensina de novo. Em 1964, fora a dualidade política mundial da Guerra Fria, que influenciou diretamente no golpe contra o “comunista” Jango, essa era justificativa para o regime. “Já, já, entregamos pra vocês”, disseram. E o golpe dentro do golpe, em 1968, enfiou-nos goela abaixo 21 anos de regime de exceção. Coitado do Lacerda, o oportunista de antanho. Morreu com a biografia conspurcada como um bananão-massa-de-manobra. Cada um colhe o que planta e escreve as linhas da própria biografia.

Veja os exemplos de Venezuela e Coréia do Norte. Não são regimes militares, mas são autoritários. Os mesmos que criticam o autoritarismo destes países – que, por mais que tenham eleição, são sempre suspeitas (Venezuela) ou fingidas (Coréia do Norte) –, querem o autoritarismo no Brasil. Essas nações têm problemas sérios de violação de Direitos Humanos não por serem alinhadas à esquerda, mas por serem autoritárias.

O brasileiro que pede intervenção militar precisa de uma intervenção educacional. Quem pensa que o autoritarismo resolve problemas do dia pra noite, está enganado; está pedindo o cerceamento da própria liberdade e dignidade, compactuando com abusos e práticas condenáveis. Aquele que vende a ideia mágica de resolução de problemas é um mentiroso oportunista. Mais que isso, romper a democracia é um crime. O Brasil tem muitos desafios complexos e difíceis, que não serão resolvidos na base de senso comum e tanque na rua. E ao que tudo indica, educação aos incautos é o primeiro deles.




Um comentário :

  1. O brasileiro precisa ter empatia por que pelo jeito que vão as coisas só terá empatia quando conseguir, no próprio lombo, entender o que é repressão de verdade.

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